Acidez fora do padrão? O que o leite está te contando

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Se existe um parâmetro simples, barato e revelador na análise de leite cru, é a acidez. Mas poucas equipes de controle de qualidade vão além do número. É ácido, mas por quê? É fresco, mas tem pH baixo? Está dentro do padrão, mas forma grumos na pasteurização? Quando o leite perde o equilíbrio entre pH e acidez, algo no processo já saiu do controle — e a análise revela mais do que parece.

Acidez x pH: diferenças fundamentais

Embora muitas vezes usados como sinônimos, os termos acidez e pH representam conceitos distintos e fundamentais na química de alimentos, especialmente no contexto do leite. O pH é uma medida da concentração de íons hidrogênio livres (H⁺) presentes na solução. Ele expressa a acidez ativa, ou seja, a quantidade de íons hidrogênio disponíveis em um dado momento para participar de reações químicas. No leite fresco, o pH normalmente varia entre 6,6 e 6,8. Alterações no pH ocorrem principalmente devido à atividade microbiana, como a produção de ácido lático por bactérias lácticas, que acidificam o meio. Por isso, o pH é uma ferramenta sensível para indicar o início da fermentação ou deterioração do leite.

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Já a acidez titulável, corresponde à quantidade total de substâncias ácidas capazes de reagir com uma base durante uma titulação. Isso inclui não apenas os íons H⁺ livres, mas também ácidos orgânicos como o lático, sais minerais (fosfatos, citratos) e proteínas como a caseína. Por esse motivo, ela reflete a acidez potencial da amostra. Essa medição é útil para detectar alterações mais lentas ou estruturais no leite, como o aumento gradual de compostos ácidos mesmo quando o pH ainda permanece dentro da faixa considerada normal.

Na prática, é possível que um leite apresente um pH normal e acidez elevada, especialmente em dois casos: quando há uma alta concentração natural de caseínas e sais (acidez fisiológica), ou no início da fermentação microbiana, quando a produção de ácido lático ainda é lenta e não afeta significativamente o pH. Por isso, a medição isolada de pH pode não ser suficiente para avaliar a qualidade do leite; é necessário considerar também a acidez titulável para obter um diagnóstico mais preciso sobre o frescor e a estabilidade do produto.

Padrão de referência e onde encontrar

O padrão de referência legal para a acidez do leite cru refrigerado no Brasil está estabelecido na Instrução Normativa nº 76/2018, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Segundo o Art. 5º, inciso VI da norma:

“O leite cru refrigerado deve atender aos seguintes parâmetros físico-químicos:
VI – acidez titulável entre 0,14 (quatorze centésimos) e 0,18 (dezoito centésimos) gramas de ácido lático por 100 mL.”

Essa faixa equivale a 14°D a 18°D na escala Dornic, o método tradicionalmente utilizado nas plataformas de recebimento de leite e em laboratórios de controle de qualidade. A conversão é direta: 1°D equivale a 0,01 g de ácido lático por 100 mL de leite.

📌 Importância do padrão: valores de acidez abaixo de 14°D podem indicar adulteração por adição de água ou neutralizantes químicos, enquanto valores acima de 18°D podem sugerir início de fermentação microbiana, armazenamento inadequado, ou falta de higiene durante a ordenha. Qualquer resultado fora desse intervalo deve ser investigado imediatamente dentro do programa de autocontrole da propriedade ou da indústria.

Por que os sólidos influenciam a acidez titulável?

O leite, conforme já mencionado, contém sólidos como:

  • Caseínas (proteínas que possuem grupos ácidos),

  • Ácidos orgânicos naturais (lático, cítrico),

  • Sais minerais (fosfatos, citratos, etc).

Esses compostos não afetam diretamente o pH, mas reagem com a base durante a titulação, contribuindo para a acidez titulável. Por isso, quanto maior o teor de sólidos do leite (especialmente proteínas e sais), maior tende a ser a acidez titulável, mesmo com pH dentro da faixa normal.

Como identificar que uma análise de acidez está incorreta?

1. Incompatibilidade entre pH e acidez titulável

Se o leite apresenta:

  • pH normal (6,6–6,8), mas acidez muito alta (>18°D) → pode ser erro na titulação ou contaminação por resíduos ácidos.

  • pH baixo (<6,5) com acidez dentro do padrão (14–18°D) → pode indicar presença de contaminantes ácidos (ex: colostro, detergente, leite mastítico) sem alteração na carga ácida total.

👉 Ações: Sempre medir pH e acidez juntos. Divergência entre os dois é um dos primeiros sinais de erro ou contaminação.

2. Volume de base muito alto ou muito baixo sem justificativa

Se o volume de NaOH usado na titulação for incompatível com o aspecto do leite, desconfie:

  • Ex: leite fresco e gelado, com odor e aspecto normais, mas acidez >20°D → provavelmente houve erro de leitura, preparo incorreto do reagente ou contaminação da amostra.

👉 Ações:

  • Verifique a padronização da solução de NaOH (concentração correta e validade);

  • Repita a titulação com amostra nova e reagente fresco;

  • Certifique-se de que o titulador não ultrapassou o ponto de viragem do indicador.

3. Cor incorreta no ponto final da titulação

O ponto final da titulação (usando fenolftaleína) deve apresentar uma coloração rosa suave e estável por cerca de 30 segundos. Se:

  • A cor aparece forte e logo desaparece → titulação passou do ponto (superestimou acidez);

  • A cor não aparece → base insuficiente, ou problema no indicador.

👉 Ações:

    • Usar fenolftaleína “nova” e na concentração correta;

    • Evitar titulação em local com luz intensa (que interfere na percepção da cor);

    • Utilizar recipientes limpos, livres de resíduos de sabão ou ácido.

4. Desvio sistemático nos resultados de um técnico ou equipamento

Se todas as amostras analisadas por um mesmo técnico ou bancada apresentam valores sistematicamente mais altos ou mais baixos, isso pode indicar:

  • Falha na calibração de vidrarias;

  • Erro no preparo do reagente;

  • Contaminação cruzada entre amostras.

👉 Ações:

  • Realizar teste de proficiência interno, comparando resultados entre analistas;

  • Revisar os procedimentos operacionais padrão (POP) do laboratório;

  • Usar amostras controle com acidez conhecida para validar cada lote de análises.

Quando o valor de acidez está alterado, o que investigar?

A verdadeira “caça às bruxas” começa quando a acidez foge do intervalo padrão. Um resultado fora da faixa de 14°D a 18°D não deve ser tratado apenas com uma reprovação automática na análise. Ele exige a ativação de um protocolo técnico, investigativo e orientado por hipóteses consistentes.

📉 Acidez abaixo de 14°D

Valores de acidez muito baixos podem sugerir adulteração ou descaracterização do leite. As principais hipóteses incluem a adição de água, o uso de neutralizantes químicos como bicarbonato de sódio, ou até mesmo um leite excessivamente desnatado, com baixo teor de proteínas.

Para investigar essas causas, recomenda-se:

  • Determinar a densidade do leite (baixa densidade reforça a suspeita de adição de água);

  • Aplicar o teste de neutralizantes, conforme os métodos oficiais do MAPA;

  • Verificar a crioscopia, pois a adição de água altera o ponto de congelamento do leite.

📈 Acidez acima de 18°D

Quando a acidez está elevada, geralmente há indícios de fermentação microbiana em curso ou problemas de higiene e manejo. As causas mais comuns incluem “leite velho”, ausência de resfriamento adequado, equipamentos contaminados, tempo de transporte prolongado ou até mesmo resíduos de detergente ácido mal enxaguado, que interferem na titulação.

As ações investigativas recomendadas são:

  • Contagem bacteriana total (CBT);

  • Revisão da cadeia de frio e tempo entre ordenha e resfriamento;

  • Análise de resíduos de detergente ácido, observando o pH após o ciclo CIP;

  • Verificação do histórico do produtor, especialmente em reincidências.

A acidez como oráculo de processo

Na indústria de laticínios, a acidez não serve apenas como critério de compra, mas como uma verdadeira ferramenta diagnóstica de processo. Por exemplo:

  • Na pasteurização, o leite com acidez elevada pode coagular, levando à perda da batelada;

  • Na ultrafiltração, ela altera o equilíbrio iônico e a interação proteína-mineral;

  • No spray dryer, o leite ácido carameliza mais facilmente, gerando incrustações e escurecimento do pó;

  • Na produção de queijos frescos e iogurtes, uma fermentação residual pode levar à sobreacidificação, afetando o sabor e provocando sinérese (liberação de soro).

Conclusão: O leite avisa. Sempre.

A acidez e o pH são dois ponteiros distintos que contam histórias complementares sobre o mesmo leite. Um pode denunciar falhas na produção primária, enquanto o outro aponta para problemas na higiene ou no transporte. Ignorar esses sinais significa aceitar perdas evitáveis, rendimento reduzido e riscos sanitários.

Acidez é ciência. Mas também é vigilância. Técnica, regulatória e microbiológica. 
“O leite não mente. Quem mente é o relatório mal interpretado.”

📌 Leitura complementar recomendada:
Para uma visão completa das exigências analíticas do leite cru conforme a legislação brasileira, o artigo “Análises físico-químicas exigidas para o leite cru pelo MAPA (2022)” detalha cada parâmetro, incluindo acidez titulável, densidade, índice crioscópico e critérios de reprovação. Leitura essencial para quem trabalha com controle de qualidade na recepção.

Foto de Marieli Rosseto

Marieli Rosseto

Doutora e mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos, graduada em Tecnologia de Alimentos e Agronegócio. Especialista em Qualidade, Segurança de Alimentos e Educação Inclusiva, atua como especialista de processos na indústria de soro de leite e professora na área de qualidade no setor lácteo. Na pesquisa, dedica-se ao desenvolvimento de soluções sustentáveis para a indústria de alimentos, como filmes biodegradáveis a partir de resíduos. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8172882358532158

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