Apesar dos avanços regulatórios e da crescente pressão de mercado por alimentos seguros, grande parte do setor lácteo ainda enxerga o APPCC (Analises de perigos e pontos críticos de controle) como um requisito documental, uma obrigação para atender auditorias, e não como uma base estratégica para a gestão da qualidade e da segurança de alimentos. Essa visão limitada impede que o sistema cumpra sua verdadeira finalidade: atuar como um mecanismo vivo de prevenção, antecipação de riscos e melhoria contínua.
O problema não está no APPCC em si, mas na forma como muitos laticínios o implementam: de maneira isolada, burocrática, sem integração com ferramentas estruturantes da qualidade.
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O setor lácteo precisa urgentemente compreender que o APPCC se torna exponencialmente mais robusto quando integrado a ferramentas da qualidade. Elas transformam dados brutos em inteligência acionável, permitindo um sistema verdadeiramente proativo.
Ferramentas como FMEA, Diagrama de Pareto, Ishikawa e cartas de controle (SPC) não apenas complementam o APPCC, elas amplificam sua capacidade de análise, priorização e tomada de decisão. Enquanto o APPCC descreve perigos e controles para aqueles que se apresem significativos, essas ferramentas ajudam a entender o processo em profundidade, medir criticidade, organizar causas, identificar padrões e monitorar variações ao longo do tempo. A soma dessas abordagens fortalece a robustez do sistema, reduz dependência de decisões subjetivas e aumenta a capacidade do estabelecimento de responder rapidamente a desvios.
Por que o APPCC está estagnado em muitos laticínios?
A principal falha está na cultura organizacional. Em muitos estabelecimentos, o APPCC é tratado como um documento obrigatório que fica engavetado e que só são revisados antes de auditorias de clientes. Poucos gestores entendem que um sistema de segurança de alimentos só é eficaz quando há análise contínua dos dados reais do processo, investigação estruturada das causas dos desvios e priorização inteligente dos recursos.
Outro problema recorrente é a dificuldade na análise de perigos. Muitos times apontam perigos de forma superficial ou excessiva, resultando em planos confusos, com PCCs mal definidos e controles pouco efetivos. Nesse cenário, ferramentas como FMEA e Ishikawa poderiam fornecer clareza, mas raramente são utilizadas de forma sistemática.
Por fim, há a falta de integração com a gestão da qualidade. A segurança de alimentos não é uma ilha isolada do restante da empresa, não é responsabilidade somente da qualidade, ela depende de pessoas, métodos, máquinas, materiais, ambiente e medições consistentes. As ferramentas da qualidade foram criadas justamente para organizar essas variáveis, porém, quando não aplicadas, o APPCC fica incompleto e frágil.
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FMEA: a ferramenta que o setor lácteo ignora, mas deveria adotar imediatamente
O FMEA (Failure Mode and Effects Analysis) é uma das ferramentas mais poderosas para fortalecer o APPCC, pois aprofunda a análise de perigos e quantifica criticidade.
Segundo menciona a Food Safety Brasil, o FMEA permite identificar em cada etapa do processo:
- Os possíveis erros;
- As causas e efeitos para deste no processo;
- Estabelecer os mecanismos de controle e ações corretivas mais adequados.
Quando a análise de perigos é combinada com o FMEA, a definição de PCCs se torna mais objetiva e embasada.
No setor lácteo brasileiro, poucos estabelecimentos realizam esse tipo de análise de maneira formal, perdendo a oportunidade de quantificar riscos. A ausência de FMEA faz com que muitos PCCs sejam definidos com base em percepções individuais, e não em dados estruturados, resultando em controles inadequados ou excessivos.
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Diagrama de Pareto: priorizar antes de agir
Os problemas de segurança de alimentos não são todos iguais. Em qualquer indústria, inclusive na láctea, uma pequena parcela dos desvios normalmente responde pela maior parte dos impactos na qualidade, custos e retrabalhos. O Diagrama de Pareto permite visualizar essa distribuição e priorizar recursos. Diagrama de Pareto é um gráfico de em ordem decrescente, que ajuda a priorizar as causas de defeitos. O principal objetivo do Diagrama de Pareto é detectar quais os problemas mais importantes para separá-los dos mais comuns ( Junio. J, 2022).
Ao aplicar Pareto sobre dados de:
- desvios de PCC,
- reclamações de consumidores,
- resultados microbiológicos,
- desvios de temperatura,
- reprocessos,
- contaminações cruzadas,
- falhas de higienização,
O estabelecimento identifica onde deve atuar primeiro. Essa priorização é essencial para tornar o APPCC um programa eficiente. O Pareto evita que equipes gastem energia em problemas irrelevantes enquanto os principais riscos permanecem ativos.
Muitos laticínios afirmam não ter tempo para melhorar processos; a verdade é que falta foco. O Pareto fornece esse foco e deve ser revisado periodicamente como parte da revisão do APPCC.
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Diagrama de Ishikawa: raiz das causas, não sintomas
Outro equívoco comum do setor lácteo é tratar sintomas como se fossem causas. A presença recorrente de coliformes, por exemplo, não é uma causa é um efeito. A raiz pode estar na falha de CIP, no treinamento inadequado, na água fora de especificação, em pontos mortos no circuito, entre outras possibilidades.
O Diagrama de Ishikawa (ou Espinha de Peixe) é a melhor ferramenta para organizar essas causas potenciais. Ao estruturar causas por categorias (Pessoas, Métodos, Máquinas, Materiais, Meio Ambiente e Medição) o Ishikawa ajuda a montar investigações mais completas e ações corretivas mais eficazes.
Integrado ao APPCC, o Ishikawa contribui em:
- reanálises de perigos,
- investigações de desvios de PCC,
- revisões de Prerrequisitos Operacionais (PPROs),
- aumento do entendimento do processo pelas equipes,
- redução da subjetividade em discussões técnicas.
A ferramenta também fomenta cultura de equipe, pois exige participação multidisciplinar, algo essencial em segurança de alimentos.
No artigo Ishikawa na prática: estudo de caso em produção de queijo, disponível na Derivando Lei te, Goneli traz um exemplo pratico de como utilizar o diagrama na produção de queijos.
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Cartas de controle: transformar monitoramento em vigilância estatística
O APPCC exige monitoramento contínuo dos PCCs porém, a forma como muitos laticínios monitoram é reativa e pontual. As equipes verificam se está “dentro da faixa” e, se estiver, seguem em frente. Essa abordagem ignora tendências, variações e comportamentos que antecedem falhas.
As cartas de controle, ou seja, seu formulário de acompanhem-no de processo, são parte essencial do Controle Estatístico de Processo, transformam esses dados em informação real. Em vez de apenas identificar desvios, elas mostram se o processo está estável, se está tendendo a perder o controle e se a variabilidade está aumentando.
Aplicações no setor lácteo incluem:
- Gordura em padronização de leite para queijos,
- Leituras de ATP antes de liberação de máquinas e swab ambiental,
- condutividade e concentração de solução para CIP.
- Gordura em soro de leite após corte da coalhada e após a descida da massa para a prensagem.
Ao usar cartas de controle e avaliando suas tendencias, o laticínio começa a atuar de forma preventiva, ajustando processos antes que um perigo se materialize.
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O que ainda falta para o setor lácteo avançar?
O grande desafio não é técnico; as ferramentas são conhecidas, disponíveis e bem documentadas. O obstáculo é cultural. Para que APPCC e ferramentas da qualidade funcionem em conjunto, é necessário:
- Treinamento contínuo e prático, não apenas teórico.
- Documentação eficiente, que conecte análises a decisões e indicadores.
- Participação real das equipes operacionais, e não apenas do setor da qualidade.
- Uso regular de dados do processo, não somente registros arquivados para auditorias.
- Revisões periódicas, com as ferramentas de qualidade incorporados às reuniões de gestão.
- Foco em prevenção, substituindo cultura reativa por cultura analítica.
Quando o APPCC se torna um sistema vivo e integrado a essas ferramentas, o estabelecimento ganha não apenas segurança de alimentos, mas consistência operacional, redução de perdas, maior previsibilidade e decisões mais inteligentes.
Conclusão
O setor lácteo ainda não entendeu que o APPCC não é apenas uma exigência documental é um sistema que depende de ferramentas para funcionar de forma plena. FMEA, Pareto, Ishikawa e cartas de controle não são acessórios; são multiplicadores de eficácia do APPCC, pois transformam análise de perigos em análises profundas, priorizadas e orientadas a dados.
Quando integrados, esses métodos fortalecem a tomada de decisão, elevam o nível de prevenção, reduzem riscos e sustentam a melhoria contínua. Mais do que cumprir normas, laticínios que adotam essa abordagem ganham robustez operacional e constroem sistemas de segurança de alimentos verdadeiramente resilientes.
Referências:
- Codex Alimentarius. General Principles of Food Hygiene CXC 1-1969, including HACCP System (2020).
- FOOD SAFETY BRAZIL. Pontos de controle. Food Safety Brazil, [s.d.]. Disponível em: https://foodsafetybrazil.org/tag/pontos-de-controle/. Acesso em: 30/11/2025
- Junior. J. Análise e aplicação das ferramentas da qualidade: um estudo de caso de um processo produtivo em um setor frigorífico Universidade Federal de Uberlândia, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/35848/1/AnaliseEAplicacao.pdf acesso em: 30/11/2025
- BPF, APPCC ou certificações: qual implementar primeiro?


