O que a indústria ainda erra no controle de Salmonella

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Em junho de 2024, a FDA (U.S. Food and Drug Administration) e o  CDC (Centers for Disease Control and Prevention) investigaram um surto de Salmonella ligado a produtos de cream cheese e queijos cremosos nos Estados Unidos — dezenas de casos, hospitalizações e uma série de recalls de marcas conhecidas.

Antes disso, em fevereiro do mesmo ano, outro recall abalou o setor: queijos frescos e cotija contaminados com Listeria.
Em ambos os episódios, as falhas não estavam na teoria — estavam no chão da fábrica.

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Esses casos mostram algo desconfortável, mas verdadeiro:
Mesmo com CIP automatizado, pasteurização validada e PCR em tempo real, a Salmonella ainda encontra brechas na indústria de laticínios.

E o problema não é a bactéria — é a repetição dos mesmos erros.

Onde o risco começa: do úbere ao spray dryer

A Salmonella vive naturalmente no intestino de bovinos, aves e suínos.
Durante a ordenha, pequenas quantidades de fezes ou água contaminada podem ser o ponto de partida.
Mesmo refrigerada, a bactéria sobrevive bem em leite cru a 4 °C — e chega viva à indústria.

Dentro da planta, os vilões são mais discretos:

  • Conexões de CIP que não drenam bem;

  • Válvulas de desvio com acúmulo de leite;

  • Gaxetas ressecadas;

  • Poeira em linhas de pó ou envase.

Em produtos secos (leite ou soro em pó), a baixa atividade de água impede o crescimento, mas aumenta a sobrevivência e a resistência térmica.
O resultado é um risco “silencioso” — o microrganismo não cresce, mas também não morre.

“A ausência de crescimento não significa ausência de perigo.”

A falsa sensação de segurança térmica

A pasteurização é um pilar da segurança, mas sua eficácia depende da matriz.
O leite integral, com mais gordura, protege termicamente a Salmonella — dificultando sua destruição.

  • Faixa de crescimento: 5 °C a 46 °C (ótimo em torno de 37–43 °C)

  • D-value típico: 0,1–0,2 min a 70 °C em leite desnatado; até o dobro em integral

  • Z-value médio: 4,3–5 °C

Se o sensor do pasteurizador estiver descalibrado em apenas 1 °C, ou se a válvula de desvio demorar 2 segundos a mais, o processo pode falhar.

“A pasteurização não é só temperatura — é validação, manutenção e rastreabilidade térmica.”

Recontaminação pós-processo de pasteurização

A maioria dos surtos não vem de falhas térmicas, mas de recontaminação pós-pasteurização.
A Salmonella forma biofilmes resistentes que sobrevivem a ciclos de CIP, especialmente se houver resíduos orgânicos.

Locais críticos:

  • Tubulações horizontais com pontos de drenagem incompleta;

  • Válvulas duplas;

  • Linhas de ar comprimido contaminadas;

  • Drenos em áreas de envase.

O caso de 2024 reforçou isso: a FDA identificou o patógeno em superfícies de equipamentos e utensílios em contato pós-processo.
Não foi o leite que trouxe o problema — foi o ambiente.

“O leite entra limpo e sai contaminado — e o culpado não é o tanque, é o entorno.”

Leia mais sobre contaminação cruzada aqui.

Higiene seca: o desafio invisível dos pós lácteos

Nas áreas de leite e soro em pó, a lógica muda: não há umidade suficiente para crescimento microbiano.
Isso leva muitas equipes a relaxar os controles — erro grave.

Estudos mostram que, em baixa umidade, a Salmonella pode sobreviver por até 12 meses e torna-se mais resistente ao calor.
Casos na Europa e nos EUA já ligaram contaminações de leite em pó infantil a partículas de poeira acumuladas em spray dryers.

Boas práticas incluem:

  • Limpeza a seco (aspiradores HEPA e álcool 70%);

  • Controle de umidade (<60%);

  • Fluxo de ar filtrado e pressurizado;

  • Restrição de mangueiras de água na área seca.

“Água na área seca é convite para desastre.”

Monitoramento: detectar cedo é prevenir melhor

Métodos como ISO 6579-1:2017 e FDA BAM Chapter 5 seguem sendo referência.
Mas hoje, o uso de métodos rápidos permite triagem em menos de 24 h — ideal para liberação rápida de lotes.

Mesmo assim, o erro mais comum não é analítico: é estratégico.
Empresas ainda focam na análise de produto pronto, ignorando o ambiente.
A amostragem deve incluir:

  • Drenos e sifões,

  • Juntas e vedações,

  • Pontos de condensação,

  • Peneiras e transportadores pneumáticos.

Ler mais sobre Como implementar um monitoramento ambiental.

“Quem busca Salmonella só no produto, busca tarde demais.”

Cultura de segurança: a barreira humana

Nenhum equipamento é melhor que o comportamento das pessoas que o operam.
Trocar válvulas com a linha aberta, entrar na área limpa com botas erradas, ou usar o mesmo pano em duas zonas — são erros humanos que derrubam qualquer barreira técnica.

Empresas que controlam melhor Salmonella são as que investem em cultura de segurança:
rotinas padronizadas, feedbacks diários e times que entendem por que estão limpando — não só o que limpar.

“Treinar é ensinar. Criar cultura é transformar.”

Legislação e padrões microbiológicos (Brasil)

  • RDC 331/2019 (ANVISA) — estabelece padrões microbiológicos para alimentos.
    Exige ausência de Salmonella em 25 g em leite e derivados prontos para consumo.

  • IN 60/2019 (ANVISA) — define categorias e planos de amostragem.

  • IN 76/2018 (MAPA) — traz critérios de qualidade para leite cru e pasteurizado.

Conclusão

A Salmonella continua sendo uma velha conhecida da indústria de laticínios — não por falta de conhecimento, mas por excesso de confiança.

Ela resiste em ambientes secos, reaparece em válvulas esquecidas e se aproveita da pressa do dia a dia.
O verdadeiro controle começa onde o procedimento termina: na disciplina das rotinas, na cultura de segurança e na validação contínua dos processos.

“A bactéria não pensa. Mas ela aproveita quando a gente para de pensar.”

Enquanto houver brechas comportamentais, a Salmonella continuará sendo um lembrete de que segurança de alimentos é, antes de tudo, um compromisso diário.

Foto de Marieli Rosseto

Marieli Rosseto

Doutora e mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos, graduada em Tecnologia de Alimentos e Agronegócio. Especialista em Qualidade, Segurança de Alimentos e Educação Inclusiva, atua como especialista de processos na indústria de soro de leite e professora na área de qualidade no setor lácteo. Na pesquisa, dedica-se ao desenvolvimento de soluções sustentáveis para a indústria de alimentos, como filmes biodegradáveis a partir de resíduos. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8172882358532158

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