Promessas de ano novo no laticínio

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A cada final de ano, um cenário familiar se repete nos laticínios do país: reuniões estratégicas, promessas de reduzir perdas, melhorar a qualidade dos produtos e organizar os processos de uma vez por todas. O otimismo de janeiro, no entanto, frequentemente se transforma na repetição dos mesmos erros em março. A boa vontade, por si só, não consegue alterar a complexa realidade de uma fábrica.

A tese central é simples: o problema não é a falta de vontade da equipe ou da liderança, mas a ausência de um sistema de gestão robusto. As boas intenções fracassam quando se apoiam na tríade da falha: metas sem método, discurso sem processo e boa vontade sem dados. Não é o ano novo que muda uma fábrica; é a gestão que a transforma. Este artigo oferece um roteiro para sair do ciclo de frustração e implementar uma cultura de excelência operacional real e mensurável.

🔒 Este conteúdo continua abaixo.

1. O diagnóstico: a anatomia da falha na indústria láctea

Antes de aplicar qualquer solução, é preciso entender por que as boas intenções falham sistematicamente no ambiente fabril. A resposta está na mentalidade da liderança e na forma como a operação é medida — ou, mais frequentemente, como não é.

1.1. A mentalidade que precede o método

A transformação começa no topo da pirâmide, com a postura do dono. Vamos ser diretos: Para que que você tem seu CNPJ? Para ter lucro. Um CNPJ existe com o objetivo primário de gerar lucro. Dói, mas o primeiro passo é a consciência de desejar resultado, desejar lucro. Se a gestão não demonstra essa consciência clara e um desejo genuíno de buscar esse resultado, todo o esforço operacional se esgota em atividades que não geram valor. A equipe é um espelho dos seus líderes; a paixão pelo negócio e a busca incansável por resultados são o que inspiram uma cultura de sucesso e comprometimento.

1.2. O perigo da “Boa Vontade Sem Dados”

O fracasso em atingir metas está diretamente ligado à falta de uma medição precisa da linha de base operacional. É impossível definir uma meta realista e atingível sem antes responder à pergunta fundamental: “Como eu estou hoje?”.

2. O pilar do método: trocando desejos por Lean Six Sigma

Para que a estratégia se conecte à execução, é preciso um método. O Lean Six Sigma (LSS) é a estrutura que substitui as promessas vagas por um processo estruturado de melhoria, ligando o objetivo de lucro à rotina do chão de fábrica.

2.1. Unindo Lean e Six Sigma no contexto lácteo

O Lean Six Sigma é uma estratégia de gestão que combina a filosofia Lean, focada na eliminação de desperdícios (atividades que não agregam valor), com o Six Sigma, focado na redução da variação dos processos por meio de ferramentas estatísticas. No setor de laticínios, essa união é poderosa:

  • Lean ataca desperdícios evidentes, como tempo de espera de máquinas paradas para limpeza (CIP) ou defeitos em produtos acabados.
  • Six Sigma lida com a variabilidade inerente à matéria-prima biológica (leite) e garante a precisão de processos críticos como a pasteurização e a dosagem de ingredientes.

2.2. DMAIC e FMEA: Focando nos Riscos Reais

O LSS utiliza o ciclo DMAIC (Definir, Medir, Analisar, Melhorar e Controlar) como processo para guiar os projetos de melhoria. Na fase de Analisar, uma ferramenta crucial é a FMEA (Análise de Modos de Falha e Efeitos), que ajuda a identificar e priorizar os riscos do processo.

Um estudo de caso em laticínios aplicando a FMEA identificou que o setor de produção é onde existe a maior probabilidade de falhas. Os pontos mais críticos listados foram a pasteurização, a dosagem de insumos e, principalmente, a embalagem, classificada como a etapa mais crítica de todo o processo, pois compromete a integridade e a confiabilidade do produto final.

A FMEA revela os pontos de falha mais prováveis, enquanto as ferramentas Lean fornecem o arsenal para combater os desperdícios sistêmicos que causam essas falhas, como ilustrado abaixo:

  • Defeitos: Contaminação bacteriana pós-pasteurização ou falha de vedação da embalagem. Ferramentas: Gráficos de Controle, Poka-Yoke (à prova de erros).
  • Espera: Máquinas de envase paradas por troca de formato ou limpeza CIP prolongada. Ferramentas: SMED (Redução de Setup), Mapeamento do Fluxo de Valor.
  • Processamento Excessivo: Análises repetidas no recebimento de leite ou uso excessivo de ingredientes. Ferramentas: Padronização (POPs), Auditoria de Processos.

Contudo, um método robusto como o LSS é impotente sem o combustível que o alimenta: dados confiáveis. É isso que nos leva ao próximo pilar.

3. O pilar dos dados: da intuição à gestão por KPIs

A “boa vontade” deve ser substituída por dados mensuráveis. O controle operacional só se torna eficaz quando as métricas corretas (Key Performance Indicators – KPIs) são definidas, monitoradas e, mais importante, utilizadas para a tomada de decisão.

3.1. OEE: O indicador mestre da eficiência fabril

Na produção, o OEE (Overall Equipment Effectiveness) é o KPI mais poderoso para medir a eficiência geral de uma operação. Ele é o grande diagnóstico da fábrica, dizendo exatamente onde focar os esforços de melhoria. O OEE consolida a performance em um único número, calculado pela multiplicação de três fatores:

  1. Disponibilidade: A porcentagem do tempo planejado em que o equipamento está realmente produzindo. Uma pontuação baixa aqui aponta para problemas de manutenção e setup, indicando a necessidade de ferramentas Lean como o SMED.
  2. Performance: A velocidade com que o equipamento produz em comparação com sua capacidade máxima.
  3. Qualidade: A porcentagem de produtos bons, que atendem aos padrões, em relação ao total produzido. Uma pontuação baixa aqui indica variação no processo, o alvo perfeito para as ferramentas estatísticas do Six Sigma e uma análise FMEA.

Uma meta de OEE de 85% é reconhecida internacionalmente como um patamar de “Classe Mundial” na manufatura. Atingir este nível significa que a operação é fluida, as interrupções são raras e a qualidade é consistentemente alta.

3.2. A necessidade de donos para os indicadores

Bons KPIs precisam ser realistas, diretos, fáceis de medir e, fundamentalmente, alinhados com a estratégia de lucro do negócio. No entanto, a regra mais importante é: cada KPI deve ter um “dono” designado. Essa pessoa é a responsável por monitorar o indicador e tomar as medidas necessárias para que a meta seja alcançada. Essa prática elimina a dispersão de responsabilidade e garante que os dados se transformem em ação.

Entretanto, os melhores KPIs do mundo são inúteis se não se traduzirem em ações consistentes no chão de fábrica. Isso nos leva ao pilar final: o processo.

4. O pilar do processo: transformando o discurso em rotina consistente

Metodologias e dados só geram resultados quando são materializados em ações diárias, padronizadas e consistentes no chão de fábrica.

4.1. O fim dos POPs de gaveta

O “discurso sem processo” se manifesta claramente na falha dos Procedimentos Operacionais Padrão (POPs). Estatísticas mostram que entre 80% e 90% dos POPs não são executados corretamente. O motivo é simples: são confusos, inacessíveis ou ficam guardados em gavetas e computadores, longe do ponto de uso. Para que um POP seja uma ferramenta de gestão eficaz, ele precisa ter três características:

  1. Ser Dinâmico e Revisado: Deve ser um documento vivo, atualizado regularmente para refletir a melhor forma de executar uma tarefa.
  2. Ser Acessível no Ponto de Uso: Deve estar disponível em pranchetas ou painéis na área de trabalho para consulta imediata.
  3. Ser Verificável: Deve incluir campos para assinatura ou verificação após a conclusão de cada etapa, garantindo a execução e a responsabilidade.

4.2. A cultura que sustenta a mudança

Metodologias e tecnologias avançadas são inúteis sem uma cultura organizacional que as sustente. O engajamento dos colaboradores não se resume a benefícios superficiais; ele é construído sobre relações humanas, onde as pessoas se sentem ouvidas, valorizadas e empoderadas para contribuir com a melhoria. Estudos comprovam que a implementação do Lean resulta não apenas em ganhos de eficiência, mas também em um aumento significativo na motivação e satisfação da equipe, que passa a se sentir parte da solução.

5. A conclusão: o roteiro para uma gestão que realmente transforma

A transformação de um laticínio não acontece por acaso. Ela é o resultado de uma gestão sistêmica, disciplinada e baseada em fatos.

5.1. Substituindo a intenção pelo sistema

A mudança real exige a substituição da boa vontade por um sistema integrado que une método (LSS), dados (KPIs), processo (POPs eficazes) e cultura (engajamento). Nesse contexto, a tecnologia da Indústria 4.0, com ferramentas como IoT e Big Data, atua como a grande alavanca que viabiliza e fortalece todo o sistema de gestão, resolvendo a “tríade da falha” de forma definitiva:

  • Ela resolve a “boa vontade sem dados”: Sensores IoT coletam dados precisos e em tempo real sobre cada etapa do processo — da temperatura do pasteurizador ao volume exato de soro gerado. A informação deixa de ser uma opinião e passa a ser um fato indiscutível.
  • Ela resolve o “discurso sem processo”: Sistemas automatizados garantem que as variáveis críticas (temperatura, pressão, dosagem) sejam mantidas dentro dos padrões definidos. O processo correto não é mais uma sugestão em um POP de gaveta; ele é imposto pela tecnologia, tornando o desvio a exceção, não a regra.
  • Ela viabiliza “metas com método”: O fluxo contínuo de dados alimenta os modelos LSS. A análise preditiva permite a manutenção de equipamentos antes que falhem, maximizando a Disponibilidade do OEE. O controle em tempo real garante a conformidade, elevando a Qualidade do OEE. A tecnologia torna o método mais preciso e proativo.

5.2. Seu primeiro passo para o próximo ano

Para o próximo ciclo, abandone as promessas vagas e adote um roteiro concreto. A transformação começa com uma decisão e se materializa em ações mensuráveis.

  • Passo 1: Diga “Chega” para o Resultado Ruim. O primeiro passo é dizer “chega” para a fruta ruim, para o resultado ruim que tiver na sua empresa. Se você não disser um “chega”, você não muda. É a decisão consciente da liderança de não tolerar mais a ineficiência.
  • Passo 2: Defina sua Linha de Base. Antes de sonhar com o futuro, encare a verdade dos seus números atuais. Responda com honestidade e dados à pergunta: “Como eu estou hoje?”.
  • Passo 3: Escolha UM Indicador-Chave. Comece pequeno. Defina um KPI crítico para o seu negócio. Pode ser o OEE da sua linha de envase para atacar perdas de eficiência, ou o Yield de conversão do seu queijo principal para focar na rentabilidade da matéria-prima.
  • Passo 4: Aja com Método. Use os dados desse KPI para iniciar seu primeiro ciclo de melhoria. Transforme o desejo de “agora vai” em um plano de ação estruturado, com metas claras e responsabilidades definidas. É assim que a boa vontade finalmente se transforma em resultado.

Por um mundo onde todos aprendem….todos os dias!

Foto de Marcos Nazareth

Marcos Nazareth

Mestrando, Professor de química pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e técnico em Laticínios pelo Instituto Laticínios Cândido Tostes. Entusiasta da internet e informação. Gerente Industrial | Empreendedor | Investidor

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