Quando o queijo não vem da vaca: ameaça ou oportunidade?
Imagine um queijo que nunca viu uma glândula mamária, mas que promete derreter no hambúrguer, maturar como um bom cheddar e oferecer o mesmo sabor do queijo tradicional. Essa é a proposta de startups como a Better Dairy, sediada em Londres, que vem investindo em tecnologias de fermentação de precisão para produzir proteínas lácteas como a caseína sem precisar do leite em si. Em vez de ordenha, o processo começa com leveduras geneticamente modificadas que produzem a proteína-chave do leite — a mesma tecnologia usada para fabricar insulina sem precisar de tecidos animais.
O resultado é um “leite” sintético que, ao ser combinado com gorduras vegetais e outros componentes estruturais, dá origem a um novo tipo de queijo: o queijo cultivado em laboratório. E embora ainda não esteja nas prateleiras por questões de custo e regulação, o plano é claro: ocupar o espaço dos derivados lácteos tradicionais, começando pelos queijos de difícil substituição no universo vegano — como o cheddar maturado.
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Mas o setor tradicional deve se preocupar?
Entre inovação e rejeição: o mercado (ainda) prefere o natural
Segundo o Conselho de Desenvolvimento Agrícola e Hortícola do Reino Unido (AHDB), o entusiasmo por queijos veganos e produtos plant-based vem caindo. Só no primeiro trimestre de 2025, as vendas desses produtos caíram 25,6%, enquanto os queijos de leite de vaca cresceram 3% no mesmo período. A razão parece simples: sabor, preço e saúde.
Apesar das alegações de que o queijo de laboratório tem menos colesterol, não contém lactose e oferece menos gordura saturada, muitos consumidores ainda o veem como um alimento ultraprocessado — uma categoria que assusta. Além disso, 40% das pessoas que compraram queijo vegano em 2024 não repetiram a compra, sugerindo que a experiência sensorial ainda deixa a desejar.
E há outro fator de peso: a percepção do natural. Uma pesquisa revelou que 71% dos consumidores ainda consideram os laticínios como alimentos naturais. Ou seja, mesmo em um cenário altamente industrializado, o leite e seus derivados carregam uma imagem positiva de tradição, campo e autenticidade.
O que dizem os pioneiros do queijo de laboratório?
Enquanto os desafios crescem, as empresas seguem apostando. A francesa Standing Ovation planeja lançar seus queijos cultivados nos EUA em 2026 e na Europa até 2027, apostando em parcerias com grandes marcas como a Bel (fabricante do Babybel). Já a Those Vegan Cowboys, da Holanda, mira queijos de uso industrial, como os de pizzas congeladas, onde a troca pelo “novo queijo” pode passar despercebida.
O executivo da Standing Ovation, Yvan Chardonnens, reconhece que a primeira geração de queijos veganos falhou por falta de qualidade, mas acredita que a “segunda onda” dos fermentados de precisão será diferente. A aposta está na reabilitação do sabor e da textura — pontos que ainda derrapam no mercado alternativo.
Na Better Dairy, o CEO Jevan Nagarajah já produziu queijos azuis, mussarelas e macios, mas foca no cheddar como desafio principal. Ele acredita que, no futuro, queijarias artesanais poderão utilizar o “leite não lácteo” da empresa para criar seus próprios produtos, elevando o padrão sensorial e a diversidade do portfólio.
E se o futuro for híbrido?
É cedo para afirmar que esses queijos substituirão os tradicionais, mas também é cedo para descartá-los. A evolução da fermentação de precisão e a busca por soluções mais sustentáveis podem encontrar sinergias inesperadas com o setor de laticínios, como o uso dessas tecnologias para desenvolver ingredientes funcionais, alternativas para intolerantes à lactose ou mesmo como insumos em produtos compostos.
O ponto crítico será sempre o mesmo: sabor, preço e percepção. E aí está o desafio — e talvez a oportunidade.
O queijo de laboratório pode ser uma ameaça?
Sim. Mas também pode ser uma nova ferramenta na cadeia.
A indústria de laticínios precisa acompanhar de perto essas transformações. Seja para defender seu espaço, seja para incorporar inovações. Afinal, o consumidor continuará buscando sabor, tradição e confiança. E nisso, o leite de verdade ainda tem muito a oferecer.
Fonte original: BBC News, matéria de Aleks Phillips.
Leia na íntegra: https://www.bbc.com/news/articles/c98jjgqyd6po