Efluente lácteo pode gerar renda?

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O gerenciamento de efluentes líquidos é um dos pontos críticos na operação das indústrias de laticínios. Esse tipo de resíduo é formado, principalmente, pelas águas utilizadas nos processos de limpeza e sanitização (CIP), enxágue de equipamentos, lavagem de pisos, funcionamento das torres de resfriamento e também águas pluviais contaminadas. Tradicionalmente, esses efluentes foram tratados como passivos ambientais, exigindo tratamentos complexos e de alto custo antes de seu descarte.

Com a evolução das práticas industriais e o fortalecimento dos conceitos de Produção Mais Limpa e Economia Circular, a visão sobre esses resíduos vem mudando. Hoje, eles são cada vez mais percebidos como recursos que podem ser reaproveitados, agregando valor e promovendo ganhos ambientais e econômicos para as indústrias.

Caracterização dos efluentes líquidos na indústria de laticínios

Os efluentes líquidos gerados pelas indústrias lácteas são caracterizados pela presença de substâncias orgânicas e inorgânicas, em proporções que variam conforme os produtos fabricados e os processos adotados.

Entre as principais características, destacam-se:

  • Elevada carga orgânica, com resíduos de leite, gordura, proteínas e sólidos suspensos;

  • Presença de compostos inorgânicos, como detergentes alcalinos, ácidos de limpeza e desinfetantes;

  • Variações no pH, decorrentes do uso alternado de soluções alcalinas e ácidas nos processos de limpeza;

  • Volumes expressivos, podendo gerar até 5 litros de efluente para cada litro de leite processado, dependendo da eficiência interna dos processos

Riscos e desafios associados ao efluente líquido não tratado

O descarte inadequado desses efluentes implica riscos ambientais significativos:

  • Contaminação de corpos hídricos;

  • Eutrofização e redução da biodiversidade aquática;

  • Emissão de gases do efeito estufa (CH₄ e N₂O);

  • Penalidades legais decorrentes do não cumprimento da legislação ambiental.

Além disso, o tratamento convencional — via sistemas físico-químicos ou biológicos — representa custos elevados, tanto em CAPEX (instalação de sistemas) quanto em OPEX (energia, reagentes, manutenção).

Estratégias para valorização dos efluentes líquidos

1. Geração de biogás a partir da digestão anaeróbia de efluentes industriais

A digestão anaeróbia destaca-se como tecnologia madura e amplamente aplicada para o tratamento de efluentes líquidos com carga orgânica elevada.

Neste processo, a matéria orgânica é convertida em biogás, composto principalmente por metano, que pode ser:

  • Utilizado na geração de energia térmica (caldeiras, aquecimento de água);

  • Transformado em energia elétrica via motogeradores;

  • Purificado para obtenção de biometano, combustível renovável com aplicação veicular ou industrial.

Vantagens:

  • Redução do custo com energia;

  • Diminuição significativa da carga poluidora;

  • Aproveitamento do lodo gerado como biofertilizante.

Plantas industriais na Alemanha e Dinamarca reportam autossuficiência energética de até 35% utilizando biogás gerado a partir de efluentes lácteos.

2. Recuperação de nutrientes para formulação de biofertilizantes

Após o tratamento anaeróbio, o lodo digestado proveniente dos reatores apresenta elevada concentração de nutrientes — notadamente nitrogênio, fósforo e potássio.

Por meio de processos complementares, como desidratação e estabilização, esse lodo pode ser transformado em biofertilizante seguro, apto para aplicação em culturas agrícolas.

Benefícios:

  • Redução da dependência de fertilizantes químicos;

  • Contribuição para a fertilidade do solo e sequestro de carbono;

  • Destinação nobre de um resíduo que, de outro modo, demandaria descarte controlado.

Este modelo insere-se nas diretrizes da agricultura regenerativa, promovendo a reciclagem de nutrientes entre indústria e campo.

3. Reúso de água tratada em processos internos

A crescente pressão pela eficiência hídrica tem levado indústrias lácteas a investir na recuperação e reúso da água proveniente de efluentes.

Após tratamento adequado — que inclui clarificação, filtração, desinfecção (via radiação UV ou ozonização) — a água pode ser reutilizada para:

  • Limpeza de pisos e áreas externas;

  • Irrigação de áreas verdes;

  • Sistemas de resfriamento industrial.

Impactos positivos:

  • Redução no consumo de água potável em até 40%;

  • Diminuição da geração de efluentes a serem descartados;

  • Cumprimento das exigências legais relativas ao uso racional da água.

No Brasil, o reúso de água é regulamentado por diversas normas, entre elas:

4. Produção de carvão ativado e materiais adsorventes 

Iniciativas mais recentes têm explorado o uso do lodo oriundo do tratamento de efluentes como matéria-prima para a produção de carvão ativado ou outros materiais adsorventes, mediante processos de pirolisação.

Este material pode ser utilizado para:

  • Tratamento de efluentes industriais;

  • Remoção de contaminantes emergentes;

  • Aplicações na indústria química e farmacêutica.

Embora ainda em fase de desenvolvimento tecnológico, trata-se de uma rota promissora para a valorização de resíduos sólidos, com potencial de geração de novos mercados.

Considerações regulatórias e sanitárias

Para que essas alternativas sejam implementadas de forma segura e eficaz, é fundamental que estejam em conformidade com a legislação ambiental e sanitária vigente. Destacam-se alguns pontos importantes:

  • Garantir que a água de reúso não seja utilizada em atividades com potencial de contato direto com alimentos, exceto mediante processos adicionais de potabilização;

  • Cumprir os limites de emissão estabelecidos por normas federais e estaduais;

  • Obter as licenças específicas para atividades como a produção de biofertilizantes ou carvão ativado.

Aspectos estratégicos para a indústria de laticínios

A decisão de investir em tecnologias de valorização de efluentes deve considerar:

  • Análise técnico-econômica: CAPEX, OPEX, payback e risco associado.

  • Capacidade de integração: compatibilidade das soluções com a estrutura fabril existente.

  • Mercado: identificação de demanda para os subprodutos gerados (biogás, fertilizantes, água de reúso).

  • Comunicação estratégica: potencial de agregar valor à marca mediante ações concretas de sustentabilidade.

Empresas que avançam na adoção dessas práticas posicionam-se na vanguarda do setor, alinhadas às expectativas de mercados internacionais, reguladores e consumidores conscientes.

Conclusão: efluente líquido como recurso estratégico

A transformação do efluente líquido da indústria láctea de um passivo ambiental para um ativo estratégico é uma realidade viável e necessária.

Ao incorporar tecnologias de valorização, as indústrias não apenas reduzem custos com tratamento e disposição final, mas também abrem novas frentes de negócio, fortalecem sua licença social para operar e contribuem efetivamente para a transição para uma economia circular.

A sustentabilidade, nesse contexto, não é um custo adicional, mas um fator de competitividade e longevidade empresarial.

Para uma análise aprofundada sobre os aspectos legais que regulam o tratamento e o descarte de efluentes na indústria de laticínios, recomenda-se a leitura do artigo: “Efluente na indústria de laticínios: o que diz a legislação?”, publicado no Derivando Leite, que detalha as principais normas e orientações técnicas aplicáveis.

Foto de Marcos Nazareth

Marcos Nazareth

Mestrando, Professor de química pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e técnico em Laticínios pelo Instituto Laticínios Cândido Tostes. Entusiasta da internet e informação. Gerente Industrial | Empreendedor | Investidor

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