Certificações e normas globais no setor de laticínios
O mercado de leite e derivados está em constante transformação. A busca por produtos seguros, sustentáveis e rastreáveis vem moldando os padrões de consumo, as exigências de importadores e os critérios de grandes redes varejistas. Em meio a esse cenário, os laticínios brasileiros enfrentam o desafio (e a oportunidade) de se adequar às principais certificações internacionais para ganhar competitividade e acesso a mercados globais.
Neste artigo, vamos aprofundar a discussão sobre certificações essenciais, normas reconhecidas pela GFSI, acesso a mercados globais e estratégias de implementação, com foco técnico e aplicabilidade prática para indústrias de todos os portes.
Segurança dos alimentos x Segurança alimentar: qual a diferença?
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Segurança dos alimentos refere-se ao controle de riscos físicos, químicos, biológicos, alergênicos e radiológis durante a produção, garantindo que o produto final não cause danos à saúde.
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Segurança alimentar é um conceito mais amplo: trata do direito de acesso regular a alimentos em quantidade e qualidade suficientes.
Enquanto a primeira é foco direto das certificações, a segunda é um desafio global relacionado à sustentabilidade, inclusão e políticas públicas. Ambas andam juntas.
Desafios atuais da indústria de alimentos
A indústria de alimentos, especialmente o setor de laticínios, vive um cenário dinâmico e complexo. Além de garantir a produção de alimentos seguros e de qualidade, as empresas precisam se adaptar a mudanças regulatórias, tecnológicas e comportamentais. A seguir, detalhamos os principais desafios enfrentados atualmente:
Crescimento da vigilância regulatória internacional
Nos últimos anos, houve um aumento expressivo na fiscalização dos mercados importadores, com regras mais detalhadas, auditorias mais rigorosas e exigências adicionais para acesso a determinados países. Por exemplo:
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União Europeia: regulações como o Regulamento (CE) n.º 178/2002 exigem rastreabilidade total “do campo ao consumidor”.
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Estados Unidos: com o FSMA (Food Safety Modernization Act), a FDA passou a exigir planos preventivos e provas documentadas de controle de riscos.
Isso exige que indústrias brasileiras estejam em conformidade não apenas com a legislação nacional, mas também com normas e práticas globais, o que pode ser um desafio operacional e jurídico significativo.
Pressão por transparência e rastreabilidade
Consumidores, varejistas e governos estão exigindo mais clareza sobre a origem e os processos envolvidos na produção dos alimentos. Isso significa que:
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Todos os insumos utilizados devem ser rastreáveis.
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As empresas devem manter registros atualizados e acessíveis sobre cada etapa da cadeia produtiva.
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Há demanda por tecnologias que assegurem essa rastreabilidade, como softwares de gestão, QR codes e, em alguns casos, blockchain.
Para o setor lácteo, isso implica desde o controle sanitário dos animais até o destino final do produto, incluindo transporte, armazenamento e distribuição.
Custos com adaptação e conformidade
Estar em conformidade com normas como FSSC 22000, BRCGS ou ISO 22000 requer investimentos financeiros e humanos consideráveis:
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Treinamentos para a equipe em todos os níveis hierárquicos
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Contratação de consultorias especializadas
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Adequações físicas na planta industrial
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Monitoramento laboratorial e documental constante
Empresas de menor porte sentem ainda mais o impacto desses custos, muitas vezes tendo que escolher entre manter a operação básica ou investir em certificações que abrem portas para novos mercados.
Dificuldade de pequenas empresas em entender e acessar certificações
Para muitos pequenos e médios produtores, os processos de certificação ainda são vistos como complexos, burocráticos e distantes da realidade. Isso ocorre por fatores como:
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Falta de informação clara e acessível
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Pouca capacitação técnica interna
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Dificuldade em interpretar os requisitos das normas
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Receio de não conseguir manter a certificação após a auditoria inicial
Esse cenário cria uma lacuna: quem mais precisa da certificação para crescer é quem menos consegue acessá-la.
Expectativas de consumidores cada vez mais exigentes
O perfil do consumidor mudou. Hoje, ele quer:
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Alimentos seguros, rastreáveis e com origem conhecida
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Sustentabilidade ambiental e social
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Transparência nos rótulos e práticas éticas de produção
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Em alguns nichos, há demanda por produtos orgânicos, livres de lactose, de origem vegetal ou com certificações específicas (Halal, Kosher, Selo Arte, etc.)
Empresas que não acompanham essas transformações podem perder espaço para marcas que dialogam com o novo consumidor.
Tendências na indústria de laticínios e alimentos
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Certificações de sustentabilidade e bem-estar animal
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Digitalização da rastreabilidade (blockchain)
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Sistemas de gestão integrados e auditáveis
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Adoção de certificações GFSI benchmarked como FSSC 22000, BRCGS, IFS
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Valorização crescente do selo de origem artesanal (Selo Arte, Queijo Artesanal)
Aspectos legais para comércio internacional
A entrada em mercados globais exige conformidade com:
Codex Alimentarius
Conjunto de normas desenvolvidas pela FAO/OMS com diretrizes para garantir alimentos seguros e de qualidade.
Regulamentos da União Europeia
Muito detalhados, com ênfase em rastreabilidade, bem-estar animal e resíduos.
Requisitos por mercado:
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EUA: foco no FDA e FSMA
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Oriente Médio: exige certificado Halal
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Mercado Judaico: requer Kosher
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Europa: exige rastreabilidade e selos como IFS, FSSC e BRCGS
Acesso a mercados internacionais: custo ou vantagem?
Custos de conformidade incluem auditorias, treinamentos, implementação e manutenção das normas. Porém, o investimento retorna em:
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Acesso a novos clientes
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Redução de riscos e recalls
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Vantagem competitiva frente a concorrentes informais
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Melhoria da imagem e reputação da marca
Estratégias para conformidade e acesso a mercados
A implementação de um sistema de gestão é o primeiro passo estratégico:
Etapas práticas:
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Análise de lacunas (gap analysis)
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Treinamento e capacitação da equipe
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Documentação e implementação de práticas
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Monitoramento contínuo e auditorias internas
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Escolha da norma adequada: FSSC 22000, BRCGS, IFS, ISO 22000
O papel da GFSI na harmonização de normas
Nos anos 90, as exportações brasileiras eram sobrecarregadas com auditorias duplicadas por normas diversas. Isso mudaria com a criação da Global Food Safety Initiative (GFSI), no início dos anos 2000.
A GFSI criou o benchmarking de normas, promovendo reconhecimento mútuo e redução de auditorias. As normas reconhecidas incluem:
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FSSC 22000
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BRCGS
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IFS
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SQF
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GlobalG.A.P. (produção primária)
Como são criadas e reconhecidas as normas?
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A norma é desenvolvida por um organismo técnico
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Submetida à GFSI para avaliação
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Após aprovação, pode ser usada por certificadoras acreditadas
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As empresas passam por auditorias com base na norma reconhecida
Principais certificações relevantes
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BPF (Boas Práticas de Fabricação)
- Estabelece práticas higiênico-sanitárias fundamentais para a produção de alimentos seguros.
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HACCP (Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle)
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Identifica, avalia e controla perigos que afetam a inocuidade dos alimentos.
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FSSC 22000 (Food Safety System Certification)
- Sistema de gestão integrado baseado na ISO 22000 + programas de pré-requisitos específicos, reconhecido pela GFSI.
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BRCGS / IFS / SQF
- Normas exigidas por grandes varejistas e redes de distribuição globais para garantir segurança e qualidade dos alimentos.
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ISO 22000
- Sistema de gestão da segurança dos alimentos aplicável a toda a cadeia alimentar.
ISO 9001 / 14001 / 45001 / 28000 / 22005 / 17025
- ISO 9001: Gestão da qualidade
- ISO 14001: Gestão ambiental
- ISO 45001: Saúde e segurança ocupacional
- ISO 28000: Segurança da cadeia logística
- ISO 22005: Rastreabilidade de alimentos e rações
- ISO 17025: Ensaios e calibração de laboratórios
Kosher / Halal / Orgânico / GlobalG.A.P
- Certificações voltadas para nichos específicos:
- Kosher: Regras da dieta judaica ortodoxa
- Halal: Alimentos permitidos pela lei islâmica
- Orgânico: Produção sem agrotóxicos e transgênicos
- GlobalG.A.P.: Segurança e boas práticas na produção primária (agricultura, pecuária, aquacultura)
Conclusão
A certificação não é mais uma barreira: é porta de entrada. A indústria de laticínios que se estrutura para a conformidade com normas internacionais colhe mais do que aprovação técnica — ela colhe respeito, mercado e rentabilidade.