Estudo de aceitabilidade de “leite” oriundo de fermentação

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Imagine um copo de leite que nunca passou pelo úbere de uma vaca. Em vez disso, foi produzido em tanques de fermentação, onde microrganismos programados replicam as mesmas proteínas que compõem o leite bovino — caseína e soro. Essa é a promessa do leite de fermentação de precisão (ou precision fermentation milk), tecnologia que pode reduzir emissões, eliminar o uso de animais e oferecer produtos adaptados à saúde do consumidor.

Mas, por mais inovador que seja, resta a pergunta: o consumidor aceitaria beber esse leite?

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Um estudo recente publicado na revista Food Quality and Preference (Banovic et al., 2025) buscou responder exatamente isso. Ao avaliar mais de 4.300 consumidores em quatro países — Dinamarca, Itália, Reino Unido e Estados Unidos — os autores revelaram como a aceitação dessa nova categoria depende de fatores culturais, tipo de informação fornecida e até da forma como o produto é rotulado

O que é fermentação de precisão aplicada ao leite?

A fermentação de precisão (PF) utiliza leveduras, bactérias ou fungos como “mini fábricas” capazes de produzir ingredientes específicos, como proteínas, vitaminas ou fibras. No caso dos laticínios, o foco é reproduzir proteínas do leite sem o uso de vacas, abrindo espaço para a fabricação de leite, iogurte, queijos e sorvetes “sem origem animal”.

A ideia não é nova: a própria indústria já utiliza microrganismos para produzir enzimas como a quimosina recombinante, usada na coagulação do queijo. A diferença é que agora a biotecnologia avança para recriar o produto final — o próprio leite.

Comparado ao leite vegetal, o de fermentação de precisão tem a vantagem de oferecer proteínas completas, sabor e textura mais próximos do leite tradicional. E, ao contrário do leite bovino, não contém lactose, antibióticos ou hormônios, podendo ser ajustado para perfis nutricionais específicos.

O estudo internacional: será que aceitamos esse leite?

O trabalho de Banovic et al. (2025) montou um experimento de escolha em que os participantes avaliavam diferentes opções de leite. As variáveis incluíam:

  • Tipo de tecnologia: leite de vaca, vegetal ou de fermentação de precisão.

  • Informação sobre bem-estar animal (“100% animal free”).

  • Informação nutricional (“proteína completa”).

  • Selo ambiental (Carbon Trust).

  • Preço.

Ao todo, participaram 4.361 consumidores: 1.167 da Dinamarca, 1.058 da Itália, 1.130 do Reino Unido e 1.006 dos EUA. Todos eram responsáveis pelas compras em casa e consumiam leite regularmente.

Principais resultados

1. Forte apego ao leite de vaca

Em todos os países, os consumidores mostraram clara preferência pelo leite bovino. Tanto o vegetal quanto o de fermentação de precisão receberam avaliações mais negativas, sendo este último o mais rejeitado.

2. O papel da informação

Quando os produtos eram acompanhados de informações específicas, a aceitação mudava.

  • Saúde: na Dinamarca e na Itália, destacar benefícios nutricionais aumentou a valorização do produto.

  • Meio ambiente: no Reino Unido e nos EUA, selos ambientais e mensagens sobre redução de carbono tiveram impacto positivo.

  • Bem-estar animal: especialmente valorizado na Itália e nos EUA.

3. Diferenças culturais

  • Itália: valorizou o rótulo “proteína completa” e o selo de sustentabilidade.

  • Reino Unido: respondeu melhor ao Carbon Trust.

  • Dinamarca: mostrou maior sensibilidade a mensagens sobre saúde.

  • EUA: aceitaram melhor quando a ênfase estava em bem-estar animal e impacto ambiental.

4. Segmentos de consumidores

Três perfis apareceram em todos os países:

  • Tradicionalistas fortes: fiéis ao leite de vaca, resistentes a novidades.

  • Tradicionalistas leves: aceitam alternativas, mas são muito sensíveis ao preço.

  • Inconsistentes: fazem escolhas aleatórias, possivelmente por falta de conhecimento.

Consumidores mais jovens, ambientalistas e menos avessos a novas tecnologias mostraram maior abertura para o leite de fermentação de precisão.

Questões de rotulagem

Um ponto crítico levantado pelo estudo é: como chamar esse produto?

Na Itália e nos EUA, os consumidores demonstraram maior aceitação de rotulá-lo como “leite”, “queijo” ou “iogurte”. Já na Dinamarca e no Reino Unido, houve resistência em usar os mesmos nomes dos derivados de vaca.

Esse embate não é exclusivo da fermentação de precisão. No Brasil e na União Europeia, já há disputas semelhantes envolvendo o uso do termo “leite” por bebidas vegetais, como soja e aveia.

O que isso significa para a indústria láctea?

A pesquisa traz insights valiosos:

  1. Comunicação importa: a aceitação aumenta quando o produto destaca atributos relevantes para cada cultura. Saúde na Escandinávia, sustentabilidade no Reino Unido, bem-estar animal nos EUA.

  2. Segmentação é chave: o público mais jovem, familiarizado com novas tecnologias e preocupado com o meio ambiente, é o alvo inicial mais promissor.

  3. Rotulagem precisa ser clara: a confiança do consumidor depende de transparência e padronização. Nesse sentido, iniciativas como a regulamentação de novel foods pela EFSA na União Europeia são centrais.

  4.  O preço ainda é barreira: consumidores tendem a rejeitar alternativas mais caras que o leite bovino, o que exige ganhos de escala para viabilizar o mercado.

Conclusão

O estudo de Banovic et al. (2025) mostra que o futuro do leite não será definido apenas pela tecnologia, mas principalmente pela aceitação do consumidor.

Seja por saúde, sustentabilidade ou ética animal, a fermentação de precisão tem potencial de transformar a indústria láctea. Mas para isso, será necessário investir em comunicação transparente, políticas claras de rotulagem e estratégias de mercado ajustadas a cada contexto cultural.

O copo de leite sem vaca já existe. O desafio é fazer o consumidor aceitá-lo à mesa.

Acompanhe o Derivando Leite!

Foto de Marcos Nazareth

Marcos Nazareth

Mestrando, Professor de química pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e técnico em Laticínios pelo Instituto Laticínios Cândido Tostes. Entusiasta da internet e informação. Gerente Industrial | Empreendedor | Investidor

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