Por que as bactérias resistem a sanitizantes?

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Higienização é um dos pilares da segurança de alimentos, mas “apertar o start no CIP” não garante, por si só, controle microbiológico. Na indústria de laticínios, o desafio é ainda maior: cargas orgânicas constantes, superfícies extensas (tanques, trocadores, tubulações, válvulas), água de dureza variável e temperaturas que nem sempre ficam no ideal. Não é de surpreender que, ao monitorar ambientes aparentemente limpos, surjam biofilmes e populações bacterianas tolerantes aos sanitizantes.

Uma meta-análise recente quantificou esse problema: a redução média de biofilmes por sanitizantes foi de apenas 2,9 log, com desempenho muito dependente do princípio ativo — hipoclorito, ácido peracético (PAA), dióxido de cloro, quaternários de amônio (QACs), entre outros. Ou seja, a escolha do produto e as condições de uso fazem toda a diferença.

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Este artigo compila evidências recentes e diretrizes normativas para responder, com dados, à pergunta que inquieta gestores de qualidade: quando a resistência a sanitizantes deixa de ser exceção e se torna risco operacional — e o que fazer para recuperar o controle?

O que significa “resistência” nesse contexto?

Em saneantes, “resistência” é um termo guarda-chuva. Ele pode significar:

  • tolerância, quando a bactéria sobrevive protegida por biofilmes, matéria orgânica, pH ou temperatura desfavoráveis ao biocida;

  • ou redução de suscetibilidade, ligada a mecanismos como bombas de efluxo.

O uso inadequado de desinfetantes pode ainda selecionar populações menos suscetíveis e, em alguns casos, até se relacionar com resistência a antibióticos. Por isso, falar em resistência a sanitizantes é, antes de tudo, falar em uso prudente, baseado em evidência e validação prática.

O que dizem os dados mais recentes?

1. Meta-análise em biofilmes

Uma revisão sistemática avaliou a eficácia de diferentes sanitizantes sobre biofilmes em superfícies de contato com alimentos. O efeito global foi de ~2,9 log de redução, mas os números variaram conforme o ativo:

  • hipoclorito de sódio (~3,29 log),

  • ácido peracético (~3,18 log),

  • dióxido de cloro (~2,16 log),

  • quaternários de amônio (~1,34 log).

O alvo microbiano também fez diferença: Listeria, Salmonella e STEC mostraram comportamentos distintos. A lição prática é simples: não existe “um sanitizante para tudo”.

2. Teste em aço inox AISI 304 (EN 13697)

Um estudo conduzido em discos de inox AISI 304, seguindo o método europeu EN 13697, mostrou resultados ainda mais claros:

  • apenas PAA a 1% eliminou totalmente todas as cepas testadas (S. aureus, Salmonella, E. coli, Enterococcus, Listeria e Pseudomonas aeruginosa);

  • hipoclorito e BAC foram eficazes contra a maioria, mas falharam diante de Pseudomonas;

  • nas concentrações mínimas de rótulo, nenhum agente atingiu a meta de eficácia (redução ≥5 log).

Ou seja, usar a concentração “de tabela” pode não bastar.

3. As condições de aplicação importam (e muito!)

  • Temperatura: PAA tem atividade maior em torno de 40 °C; QACs funcionam melhor em ambientes frios (~10 °C), o que é prático em câmaras frias.

  • pH: no hipoclorito, o equilíbrio entre HOCl e OCl⁻ é decisivo — pH levemente ácido favorece a forma mais ativa.

  • Matéria orgânica: proteínas e gorduras consomem oxidantes; sem um pré-enxágue eficaz, o sanitizante atua em “subdose real”.

Como evitar a “falsa sensação de limpeza” nos laticínios

  • Valide condições, não apenas o produto. Monitore tempo de contato, temperatura, pH, dureza da água e presença de carga orgânica.

  • Não confie na concentração mínima de rótulo. Ajuste de acordo com risco e microrganismo-alvo.

  • Escolha o ativo certo.

    • PAA é a melhor opção quando há diversidade microbiana ou suspeita de Pseudomonas.

    • Hipoclorito funciona bem para Salmonella, E. coli e S. aureus, mas não segura Pseudomonas.

    • QACs são úteis contra Listeria, mas menos eficazes frente a Gram-negativos.

  • Rotacione princípios ativos e use “choques” (como PAA em temperatura mais alta) para quebrar biofilmes e reduzir pressão seletiva.

  • Monitore tendências. Placas zeradas isoladamente não provam eficácia. O que vale é observar evolução por área e relacionar com parâmetros de CIP.

  • Projete o CIP corretamente. Vazão e turbulência adequadas evitam “zonas mortas” onde biofilmes se escondem.

Checklist prático para POP de higienização

  • Pré-enxágue removeu bem a sujidade?

  • O detergente atingiu tempo/temperatura/concentração corretos?

  • Houve enxágue intermediário adequado (condutividade abaixo do alvo)?

  • Sanitização: ativo, concentração, pH e temperatura foram verificados?

  • Validação: houve redução ≥5 log em testes de superfície representativos (EN 13697)?

  • Monitoramento: tendência acompanhada e ações graduadas (choque químico, revisão de CIP, trocas mecânicas)?

Conclusão

Resistência ou tolerância a sanitizantes não é mito. É um fenômeno esperado quando a química certa é aplicada em condições erradas. Os estudos mais recentes confirmam:

  • concentrações mínimas de rótulo não garantem segurança,

  • PAA é o ativo mais amplo, eficaz até contra Pseudomonas,

  • hipoclorito e QACs continuam relevantes, mas precisam ser usados de forma estratégica.

A saída é gestão por risco: validar condições, rotacionar ativos, monitorar tendências e seguir normas baseadas em evidências. Assim, “limpo” volta a significar realmente higienizado — e seguro.

Leia também: Contaminação cruzada: como evitar esse vilão

Foto de Marieli Rosseto

Marieli Rosseto

Doutora e mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos, graduada em Tecnologia de Alimentos e Agronegócio. Especialista em Qualidade, Segurança de Alimentos e Educação Inclusiva, atua como especialista de processos na indústria de soro de leite e professora na área de qualidade no setor lácteo. Na pesquisa, dedica-se ao desenvolvimento de soluções sustentáveis para a indústria de alimentos, como filmes biodegradáveis a partir de resíduos. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8172882358532158

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